Nossa Senhora do Rosário era santa branca, vinda de Portugal. No Brasil ela surgiu como lenda, no meio das águas, como uma iluminação. Foram muitas as tentativas para tirá-la da água e enaltece-la em um altar. Era tempo da escravidão, quando os novos moradores do Brasil-colônia, cada um oriundo de um canto estabeleceram suas relações. Uns vindo para dominar, outros dominados buscando preservar o que traziam por dentro. Cada um com sua crença e, naquele momento, uma santa para trazer para perto.
De todas as tentativas, a atendida foi a prece com cantos e tambores puxada pelos negros, com sua reza própria, festiva e rueira. Ela veio e foi assim que Nossa Senhora do Rosário se tornou sua padroeira, a santa branca, protetora dos escravos, um elo simbólico do sincretismo no Brasil, onde os negros encontraram na Igreja Católica uma forma correspondente de celebrar a sua fé, da sua forma, assim respeitada pela santa católica. O Reinado de Nossa Senhora do Rosário então se formou entre descendentes dos escravos no Brasil, especialmente em Minas Gerais, interior de Goiás e Espírito Santo, sendo popularmente conhecido como Congado.

“O congado é uma manifestação da religiosidade que se faz ver a partir de uma manifestação artística com canções, tambores e bandeiras conduzindo sua religiosidade”. A visão de João das Neves é compartilhada por Titane e por diversos outros artistas que referenciam a cultura afro-mineira em suas criações, incorporando instrumentos, cantos e outros elementos do Congado. Essa apropriação, fruto do contato de diferentes culturas e formas de expressão, é cada vez mais freqüente no mundo contemporâneo onde os limites da diversidade estão cada vez mais próximos.
João das Neves e Titane tem um histórico de interações com a cultura popular e especialmente com o Congado, “apropriado” nos discos Inseto Raro e Sá Rainha e outros trabalhos. Desta vez, com o projeto “A Santinha e os Congadeiros” os parceiros estabeleceram um processo inusitado: integrantes das guardas encenam a si próprios. Uma apropriação ao inverso ou no mínimo uma ação diferenciada, em que o processo artístico desencadeia também um elo dos jovens integrantes com a tradição, e uma valorização pela sociedade desta herança afro-brasileira.
A criação conta com elementos identitários dos participantes. A tradição se expressa pela arte, se comunica de outra forma com a mediação de João das Neves: “O caminho do artista é geralmente conhecer e beber de uma cultura para criar o seu trabalho. Neste caso, os artistas vão até a cultura e ela própria cria o seu trabalho artístico”.
A interação entre artistas e integrantes da guarda gerou o espetáculo “A Santinha e os Congadeiros”, apresentado nos dias 15 e 29 de novembro, em Contagem e Sete Lagoas, interior de Minas Gerais. O processo de montagem da peça desencadeou um contato com arte por meio da tradição que despertou em integrantes da guarda um novo interesse e uma conseqüente valorização desta tradição.
“A cultura negra é essencialmente festiva e rueira. A festa do Congado antes era perseguida, hoje é assediada. Este é um novo tempo, que exige outro comportamento dos capitães das guardas seculares de congado”. João das Neves aponta para o que Jorge Antônio dos Santos, da diretoria de eventos da Comunidade dos Arturos confirma: “Esse projeto é uma forma diferente de mostrar essa história. É um meio de manter a juventude, despertar e valorizar os jovens. Eles se sentem valorizados e valorizam a tradição. É um outro meio de preservar, manter e dar seqüência à nossa tradição”.
Para quem acompanhou: o post que estava em construção virou colaboração para a revista Continuum, do Itaú Cultural. Visita lá. Aproveite e conheça mais sobre a revista aqui mesmo.